Um Espírito Aborrecido - Relato de espírito endurecido pós-morte - Livro "O Céu e o Inferno", Allan Kardec, 1865

Tedio

 

1. Que vos leva a pedir preces?
— R. Estou farto de vagar sem objetivo.
— P. Estais há muito em tal situação?
— R. Faz cento e oitenta anos mais ou menos.
— P. Que fizestes na Terra?
— R. Nada de bom.

2. Qual a vossa posição entre os Espíritos?
— R. Estou entre os entediados.
— P. Mas isso não forma categoria...
— R. Entre nós, tudo forma categoria. Cada sensação encontra suas semelhantes, ou suas simpatias que se reúnem.

3. Por que permanecestes tanto tempo estacionário, sem que fosseis condenado a sofrer?
— R. É que eu estava votado ao tédio, que entre nós é um sofrimento. Tudo o que não é alegria, é dor.
— P. Fostes, pois, forçado à erraticidade contra a vontade?
— R. São coisas sutilíssimas para vossa inteligência material.
— P. Procurando explicar-me essas coisas, talvez comeceis a beneficiar-vos a vós mesmos...
— R. Faltando-me termos de comparação, não poderei fazê-lo. Uma vida sem proveito, extinguindo-se, lega ao Espírito, que a encarnou, o mesmo que ao papel pode legar o fogo quando o consome — fagulhas, que lembram às cinzas ainda compactas a sua proveniência, a causa do seu nascimento, ou, se o quiseres, da destruição do papel. Essas fagulhas são a lembrança dos laços terrestres que vinculam o Espírito, até que este disperse as cinzas do seu corpo. Então, e só então, tem ele, eterizada essência, o conhecimento de si mesmo, desejando o progresso.

4. Qual poderia ter sido a causa desse aborrecimento de que vos acusais?
— R. Conseqüências da existência. O tédio é filho da inação; por não ter eu sabido utilizar o longo tempo de encarnação, as conseqüências vieram refletir-se neste mundo.

ocio5. Os Espíritos que, como vós, foram tomados de tédio, não podem libertar-se de tal contingência desde que o desejem?
— R. Não, nem sempre, porque o tédio lhes paralisa a vontade. Sofrem as conseqüências da vida que levaram, e, como foram inúteis, desprovidos de iniciativa, assim também não encontram entre si concurso algum. Entregues a si mesmos, nesse estado permanecem, até que o cansaço, decorrente de tal neutralidade, os agite em sentido contrário, momento no qual a sua menor vontade vai encontrar apoio e bons conselhos e secundar-lhes o esforço e a perseverança.

6. Podeis dizer-me algo da vossa existência terrena?
— R. Oh! Deveis compreender que pouco me é dado dizer, visto como o tédio, a nulidade e a inação provêm da preguiça, que, por sua vez, é mãe da ignorância.

7. E não vos aproveitaram as existências anteriores?
— R. Sim, todas, porém, parcamente, visto serem reflexos umas das outras. O progresso existe sempre, porém tão insensível que se nos torna inapreciável.

8. Enquanto esperais uma nova encarnação, apraz-vos repetir as vossas comunicações?
— R. Evocai-me para me obrigardes a vir, pois com isso me prestareis um benefício.

9. Podeis dizer-nos por que tão freqüentemente varia a vossa caligrafia?
— R. Porque interrogais muito, o que aliás me fatiga, quando tenho necessidade de auxílio.

O guia do médium. — O trabalho intelectual é que o fatiga, obrigando-nos a prestar o nosso concurso para que possa dar resposta às tuas perguntas. Este é um ocioso no mundo espiritual, assim como o foi no planeta. Trouxemo-lo a ti para que tentasses arrancá-lo dessa apatia, desse tédio que constitui verdadeiro sofrimento, às vezes mais doloroso que os sofrimentos agudos, por se poder prolongar indefinidamente.

Imagina a perspectiva de um tédio sem-fim. A maior parte das vezes são os Espíritos dessa categoria que buscam as vidas terrestres apenas como passatempo e para interromper a monotonia da vida espiritual. Assim acontece aí chegarem freqüentemente sem resoluções definidas para o bem, obrigados a recomeçarem sucessivamente, até atingirem a compreensão do verdadeiro progresso