KARDEC E O AUTO-DE-FÉ EM BARCELONA
A manhã de nove de outubro surgiu perfumada e radiosa.
Na esplanada de Barcelona, trezentos exemplares de livros e opúsculos devem morrer.
A Idade Média ainda se demora na doirada terra de Espanha. O Santo Ofício trucida e, envenenado pela intolerância, sentindo o soçobro que se aproxima, destila ódio e violência, tentando manter a soberania.
A autoridade eclesiástica lê o libelo burlesco.
A multidão tem lágrimas nos olhos.
Archote fumegante aparece e, em breve, ousadas línguas de fogo transformam-se em labaredas, devorando as páginas grandiosas dos livros libertadores.
Temparamentos audazes atiram-se sobre as chamas que diminuem de intensidade e arrancam páginas chamuscadas que se transformarão em documentos preciosos do crime. Emocionado pintor, desejando eternizar o ato de barbaria sob a inspiração do momento, regista em cores e traços vigorosos o atentado à liberdade de consciência.
As cinzas e a tela são endereçadas ao Codificador.
Em Paris, Kardec dobra-se sob o peso da própria dor.
O gigante lionês tem a alma ferida. O vigoroso coração, parecido a corcel fogoso, agora exaurido, trabalha dominado pelo gigantismo do sofrimento.
Mentalmente, recorda figura martirizada de Jan Huss, o Apóstolo queimado vivo no séculoo XV por sentença do Concílio de Constança, apesar do salvo-conduto que o Imperador Sigismundo lhe havia dado...
A impiedade e o despotismo da fé em decadência queimá-lo-iam agora, se o pudessem. E nessa impossibilidade tentam destruir-lhe a obra, já que nada podem contra as ideias.
Todavia, recolhido à oração salutar, parece-lhe escutar as Vozes dos Céus – aquelas mesmas que o conduziram na compilação dos primeiros trabalhos – que lhe dirigem as expressões de alento e vigor.
“Ninguém poderá destruir o edifício da Fé imortalista!” – tem a impressão de ouvir na intimidade da mente.
Os Imortais estão de pé no campo de batalha.
A Doutrina Espírita é Jesus Cristo, de retorno aos corações, acolitado pelas legiões dos Espíritos Eleitos, abrindo as portas para o acesso à verdadeira vida.
É necessário que o trabalhador experimente o suplício e tenha os braços atados à cruz dos testemunhos necessários, para que ele triunfe.
Jesus não se fizera respeitar pelos contemporâneos e através dos tempos pelo que ensinou, mas pelo legado da renúncia e do sacrifício.
Assim também, a Doutrina Espírita, reivindicando as luzes da Imortalidade do Senhor e da renovação dos conceitos evangélicos na Terra, deveria experimentar o guante das mesmas dilacerações...
Era indispensável sofrer de pé, confiando, imperturbável...
Allan Kardec, vitalizado pelo fluxo da misericórdia divina e encorajado pelo tônus celeste, levanta-se outra vez, fita os cimos doirados que a vida lhe reserva, renova as disposições do espírito e, jubiloso, continua a luta.
A Doutrina Espírita se lhe afigura, então, um anjo de luz dilatando as asas sobre a Terra inteira e vestindo-a de claridade...
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Mestre! Cem anos depois de Barcelona*, o Brasil, que te guarda a mais profunda gratidão, ergue-se em louvor, através das mil vozes dos beneficiários do teu carinho, para agradecer os sacrifícios.
Contempla, dos Altos Cimos, a colossal legião de servidores do Cristo, seguindo as tuas pegadas e esparzindo o aroma da tua mensagem, em toda parte.
Barcelona vive em nossos corações reconhecidos.
As obras incineradas se multiplicaram e levam a mensagem vibrante dos Espíritos da Luz à Humanidade toda.
Ninguém pôde paralisar tuas mãos no sacerdócio da escrita, nem força alguma silenciou teus lábios no ministério da pregação...
Quando o corpo se negou a prosseguir contigo, extenuado pelo trabalho infatigável, já o mundo compreendia a Mensagem de Jesus com que enriqueceste a Terra.
E hoje, quando ameaças se levantam em toda parte, dirigidas à paz das criaturas, em forma de intranquilidade e pavor, a Doutrina que nos legaste, como bandeira de vida, é o penso consolador nas mãos de Jesus Cristo, medicando as feridas de todos os corações.
Glória a ti, desbravador do Continente da Alma!
A Humanidade espiritista, renovada e feliz, edificada no teu trabalho eficiente, rende-te o culto da gratidão e do respeito.
Salve, Allan Kardec, no dia nove de outubro, cem anos depois de Barcelona!*
Livro: À Luz do Espiritismo
Divaldo Pereira Franco, pelo Espírito Vianna de Carvalho
LEAL – Livraria Espírita Alvorada Editora
Nota de Fernando Peron (abril de 2013):
(*) – Em 9 de outubro de 1861, na cidade de Barcelona, Espanha, 300 volumes de obras de Allan Kardec foram queimados em praça pública, por ordem de autoridades da Igreja Católica. O fato, ao invés de deter a propagação da Doutrina Espírita, impulsionou-a ainda mais. Ver artigo Resquícios da Idade Média – Auto-de-Fé das Obras Espíritas em Barcelona. Livro: Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos – Ano IV, 1861 (nº 11 - novembro de 1861). Allan Kardec. FEB – Federação Espírita Brasileira.