O Suicida da Samaritana - Relato de Espírito Sofredor após

desencarne - Livro O Céu e o Inferno, Allan Kardec, 1865

 

A 7 de abril de 1858, pelas 7 horas da noite, um homem de cerca de 50 anos e decentemente trajado apresentou-se no estabelecimento da Samaritana, de Paris, e mandou que lhe preparassem um banho.

Decorridas cerca de 2 horas, o criado de serviço, admirado pelo silêncio do freguês, resolveu entrar no seu gabinete, a fim de verificar o que ocorria.

Deparou-se-lhe então um quadro horroroso: o infeliz degolara-se com uma navalha e todo o seu sangue misturava-se à água da banheira. E como a identidade do suicida não pôde ser averiguada, foi o cadáver removido para o necrotério.

1. Evocação.
(Resposta do guia do médium.) — Esperai, ele aí está.

2. Onde vos achais hoje?
— R. Não sei... dizei-mo.

3. Estais numa reunião de pessoas que estudam o Espiritismo e que são benévolas para convosco.
— R. Dizei-me se vivo, pois este ambiente me sufoca.

Sua alma, posto que separada do corpo, está ainda completamente imersa no que poderia chamar-se o turbilhão da matéria corporal;
vivazes lhe são as idéias terrenas, a ponto de se acreditar
encarnado.

4. Quem vos impeliu a vir aqui?
— R. Sinto-me aliviado.

5. Qual o motivo que vos arrastou ao suicídio?
— R. Morto? Eu? Não... que habito o meu corpo... Não sabeis como sofro!... Sufoco-me... Oxalá que mão compassiva me aniquilasse de vez!

6. Por que não deixastes indícios que pudessem tornar-vos reconhecível?
— R. Estou abandonado; fugi ao sofrimento para entregar-me à tortura.

7. Tendes ainda os mesmos motivos para ficar incógnito?
— R. Sim; não revolvais com ferro candente a ferida que sangra.

8. Podereis dar-nos o vosso nome, idade, profissão e domicílio?
— R. Absolutamente não.

9. Tínheis família, mulher, filhos?
— R. Era um desprezado, ninguém me amava.

10. E que fizestes para ser assim repudiado?
— R. Quantos o são como eu!... Um homem pode viver abandonado no seio da família, quando ninguém o preza.

11. No momento de vos suicidardes não experimentastes qualquer hesitação?
— R. Ansiava pela morte... Esperava repousar.

12. Como é que a idéia do futuro não vos fez renunciar a um tal projeto?
— R. Não acreditava nele, absolutamente. Era um desiludido. O futuro é a esperança.

tristeza113. Que reflexões vos ocorreram ao sentirdes a extinção da vida?
— R. Não refleti, senti... Mas a vida não se me extinguiu... minha alma está ligada ao corpo... Sinto os vermes a corroerem-me.

14. Que sensação experimentastes no momento decisivo da morte?
— R. Pois ela se completou?

15. Foi doloroso o momento em que a vida se vos extinguiu?
— R. Menos doloroso que depois. Só o corpo sofreu.

16. (Ao Espírito S. Luís.) — Que quer dizer o Espírito afirmando que o momento da morte foi menos doloroso que depois?
— R. O Espírito descarregou o fardo que o oprimia; ele ressentia a volúpia da dor.

17. Tal estado sobrevém sempre ao suicídio?
— R. Sim. O Espírito do suicida fica ligado ao corpo até o termo dessa vida. A morte natural é a libertação da vida: o suicídio a rompe por completo.

18. Dar-se-á o mesmo nas mortes acidentais, embora involuntárias, mas que abreviam a existência?
— R. Não. Que entendeis por suicídio? O Espírito só responde pelos seus atos.

Esta dúvida da morte é muito comum nas pessoas recentemente desencarnadas, e principalmente naquelas que, durante a vida, não elevam a alma acima da matéria.
É um fenômeno que parece singular à primeira vista, mas que se explica naturalmente.

Se a um indivíduo, pela primeira vez sonambulizado, perguntarmos se dorme, ele responderá quase sempre que não, e essa resposta é lógica: o interlocutor é que faz mal a pergunta, servindo-se de um termo impróprio. Na linguagem comum, a idéia do sono prende-se à suspensão de todas as faculdades sensitivas; ora, o sonâmbulo que pensa, que vê e sente, que tem consciência da sua liberdade, não se crê adormecido, e de fato não dorme, na acepção vulgar do vocábulo. Eis a razão por que responde não, até que se familiariza com essa maneira de apreender o fato. O mesmo acontece com o homem que acaba de desencarnar; para ele a morte era o aniquilamento do ser, e, tal como o sonâmbulo, ele vê, sente e fala, e assim não se considera morto, e isto afirmando até que adquira a intuição do seu novo estado. Essa ilusão é sempre mais ou menos dolorosa, uma vez que nunca é completa e dá ao Espírito uma tal ou qual ansiedade.

 

No exemplo supra ela constitui verdadeiro suplício pela sensação dos vermes que corroem o corpo, sem falarmos da sua duração, que deverá eqüivaler ao tempo de vida abreviada. Este estado é comum nos suicidas, posto que nem sempre se apresente em idênticas condições, variando de duração e intensidade conforme as circunstâncias atenuantes ou agravantes da falta. A sensação dos vermes e da decomposição do corpo não é privativa dos suicidas: sobrevém igualmente aos que viveram mais da matéria que do espírito. Em tese, não há falta isenta de penalidades, mas também não há regra absoluta e uniforme nos meios de punição.